Por Sergio Ricatieri Filho Eu me lembro muito bem de uma certa tarde em meados da década de 90 quando, durante a aula que assistíamos em meu antigo colégio, a diretora apareceu para dar uma lição de moral em toda a turma. Mais de duas décadas se passaram desde então e eu já não tenho a mais remota ideia do que havia causado tal situação, mas ainda assim me recordo muito claramente da moral que a lição ali apresentada tinha: “querer é poder”. “Absurdo!”, pensava o jovem nerd, introvertido e consideravelmente perseguido por bullying, enquanto repetia as palavras acompanhando o restante da turma em uníssono conforme requisitado pela autoridade máxima daquela pequena instituição social, afinal, obediência é ordem, certo? Ainda assim a dúvida persistia: “como raios ‘querer’ pode ser igual a ‘poder’?”. Pois é. Como? É claro que não poderia. Você não pode ter tudo o que quer, todo mundo sabe disso. “Querer” não é igual a “poder”. Eu não fazia a menor ideia de quem havia aparecido originalmente com essa afirmação que virou dito popular, só sabia que não concordava.
Provavelmente foi alguém tentando ajudar, como certamente era o caso da diretora do colégio. Penso que talvez – e só talvez – seja uma interpretação de outra questão muito mais profunda: a tal da força de vontade. Peço agora que o leitor reflita comigo rapidamente: como assim força de “vontade”? Oras, vontade eu tenho é de ficar em casa embaixo das cobertas, não de me levantar cedo para ir trabalhar todos os dias depois de chegar da faculdade tarde da noite. Quem tem vontade de cumprir com obrigações? De fato, creio que todos nós temos vontade de fazer aquilo que nos agrada, de relaxar e curtir a boa e velha zona de conforto no marasmo da segurança sem preocupações. Ou não? Ainda assim o termo “força de vontade” é utilizado em sentido oposto, justamente para aquilo que nos motiva a sair da zona de conforto e fazer aquilo que… bem, aquilo que não temos “vontade” de fazer, por qualquer motivo que seja.
Talvez façamos por necessidade, como um emprego que pode não ser dos nossos sonhos, mas paga nossas contas; talvez por simples obediência às ordens de pessoas como nossos pais, que nos impõem a rotina da escola sem que tenhamos escolha; ou talvez porque outra coisa nos impulsiona para fora dali. Uma coisa que faz com que nos levantemos dia após dia para encarar o mundo incerto, confuso e cheio de gente maluca, e sigamos em frente buscando algo que não está ao simples alcance dos nossos dedos. Algo que temos que nos esforçar pelo menos um pouco (e não raramente, bastante) para conquistar.
Existe a distinção entre a vontade em um sentido mais filosófico, como justamente esse “algo que nos motiva”, e a vontade no sentido utilizado no nosso cotidiano, como uma espécie de “desejo momentâneo”. Ainda assim essa distinção sempre me pareceu um tanto quanto forçada, como se filósofos estivessem em um plano paralelo ao cotidiano das pessoas, o que acaba nos levando muitas vezes à ideia errada de que “pessoas normais” não devem se preocupar com as reflexões filosóficas que, por sua vez, devem ser deixadas apenas para algum tipo de “gente desocupada” navegando em ideias bobas.
Foi só recentemente estudando idiomas que algo fez sentido para mim em toda essa questão: o verbo alemão “wollen” é usualmente traduzido para “querer”, e pode ser utilizado em uma frase como, por exemplo, “ich will…”, ou seja, “eu quero…”. Por outro lado a palavra “Wille” acaba virando “vontade”, um tema bastante trabalhado por filósofos alemães como Schopenhauer[1] e Nietzsche[2]. No idioma inglês, que herda algumas coisas do alemão, a palavra “will” é utilizado tanto como “vontade” (assim como o “Wille” alemão), quanto como uma ação futura: “I will do…” pode ser traduzido para “eu vou fazer…”. Vale ainda apontar que o que nós chamamos de “livre-arbítrio” é usualmente chamado de “free will”, em inglês, relacionando nosso termo “vontade” com a possibilidade de fazer escolhas. Falo isso tudo não para confundir o leitor, que não precisa de maneira alguma ter conhecimento prévio de tudo isso que eu estou dizendo, apenas me acompanhar por mais alguns parágrafos.
Meu objetivo aqui é demonstrar que quando eu digo “Wille” em alemão, “will” em inglês e “vontade” em português, eu não estou falando três vezes a mesma coisa. Talvez quase a mesma coisa[3], mas não a mesma coisa. A “pegadinha” aqui está no fato de que quando alguém constrói uma frase em alemão começando com “ich will…”, esse “querer” tem um significado que ultrapassa o nosso verbo português usual. Nós, por aqui, anunciamos que “quereremos” algo, é só isso mesmo: “eu quero”, e como já vimos anteriormente, querer não é poder. Repetir todos os dias a frase “eu quero ganhar na loteria” não vai fazer ninguém ganhar na loteria. Falantes de alemão, por outro lado, utilizam esse verbo para demonstrar que têm sim o interesse de fazer algo: “ich will trainieren” poderia ser traduzido para “eu quero treinar”, mas não apenas em uma afirmação de um desejo vago.
O verbo alemão é utilizado como uma afirmação de que aquilo está nos seus planos, de que você não só quer como vai treinar a não ser que alguma coisa além do seu controle o impeça, quase como nós falaríamos utilizando o tempo futuro: “eu vou treinar”. Nesse sentido específico, “querer” seria, sim, igual a “poder”, porque a própria frase já é construída como uma afirmação de uma intenção que considera a possibilidade como dada. Não faria muito sentido afirmar algo como “ich will im Lotto gewinnen” (que poderíamos traduzir para “eu quero ganhar na loteria”), ou, pelo menos, faria tanto sentido quanto afirmar, em inglês, “I will win the lottery” (“eu vou ganhar na loteria”).
Muito confuso? Peço desculpas ao leitor pelos desvios, mas penso que mudando um pouco as “chaves” que utilizamos para entender aquilo que tentamos expressar, podemos ter uma compreensão um pouco melhor das limitações dessa expressão. Se o leitor teve, digamos, a força de vontade de me acompanhar até aqui, já deve ter percebido que este não é um texto motivacional, tampouco é de meu interesse defender e muito menos criticar crenças em tradições religiosas, místicas, ou quaisquer outras. Pelo contrário: meu ponto aqui é apenas sobre o nosso maravilhoso uso da linguagem e, consequentemente, como nós compreendemos o mundo que nos cerca através dele.
Certamente que muitas dessas tradições partiram justamente da linguagem, e algumas vezes acabam se perdendo de suas origens sem que fique claro o motivo pelo qual elas foram afirmadas lá atrás. Voltemos então para nosso ponto de partida: onde raios a tal da força de vontade entra em toda essa história, afinal? A força de vontade, tão perdida no idioma português nosso de cada dia (o que talvez nos faça falta em muitos momentos, inclusive), não é sobre aquela vontade perigosa de permanecer na zona de conforto, o desejo que muitas vezes sentimos antes de sair de casa pensando várias vezes se, talvez, apenas naquele dia, não seria interessante cancelar qualquer compromisso e permanecer ali, quem sabe por estar chovendo, ou pelo calor, ou talvez porque o trabalho foi muito puxado, ou porque só não estamos com… ahm… vontade. Tanto faz, somos muito bons em arrumar motivos para justificar nossos desejos. A força de vontade é sobre a Vontade – vou usar aqui, apenas por uma distinção momentânea, o “V” maiúsculo – que nos tira da zona de conforto.
Não é um “querer” que espera que as coisas aconteçam simplesmente para a satisfação dos nossos desejos, mas um “querer fazer” que deixa claro que temos a intenção de fazer com que aquilo aconteça, porque queremos a realização de alguma coisa que depende única e simplesmente da nossa ação. Notemos que a diferença aqui está em um ponto muito preciso: a ação de buscar aquilo que está distante contra o conforto de esperar que aquilo que está distante venha até nossas mãos. Ou ainda, ter a liberdade para fazer algo acontecer ou permanecer em segurança aguardando o acontecimento. É exatamente aqui que o mundo parece, muitas vezes, conspirar para que nossa Vontade seja colocada à prova o tempo todo. Estamos em dezembro e 2020 foi um ano muito conturbado para uma quantidade incontável de pessoas. Eu gostaria de dizer que foi um ano “especialmente” complicado para quem está no dia-a-dia das artes marciais, mas isso seria injusto da minha parte.
Muitas vezes temos aquela velha tendência de enxergar em gramas distantes um verde que não vemos nas que estão em nosso quintal, e nós conhecemos muito pouco dos obstáculos que se colocam diariamente diante da Vontade de nossos amigos, colegas e de cada outro ser humano que cruza nosso caminho. Não fazemos ideia do tamanho da Vontade que todos aqueles que nos cercam precisaram empenhar para chegar até ali, o quanto custou ao motorista do ônibus para fazer valer aquilo que, no dia anterior, já estava registrado em sua mente como “amanhã eu vou trabalhar”; ou a atendente do mercado; ou a moça da recepção; ou o rapaz da portaria; e tantas outras pessoas em todas as mais variadas funções e atividades.
A força de vontade é sobre essa Vontade, aquele querer do “eu vou fazer”, da ação de buscar aquilo que está além, ainda que em meio ao vazio da insegurança extrema que nos consome. Precisamos nos sentir minimamente seguros, é uma das nossas características mais fundamentais, e em um momento de tanta incerteza que não conseguimos, literalmente, “prever o dia de amanhã”, corremos o sério risco de cair em um abismo do qual a saída requer muito mais Vontade do que podemos imaginar. É claro que muitas vezes coisas realmente importantes e imprevistas se sobrepõem aos nossos planos, e todos nós já tivemos algum motivo para deixar que a nossa Vontade fosse vencida. Não há Vontade de ferro que não se abale uma vez ou outra, e certamente precisamos saber “ouvir” quando nossos corpos têm desejos. Água, comida, descanso, diversão e de fato conforto são algumas necessidades que não podem ser simplesmente ignoradas.
Aí que está o grande problema: não existe uma fórmula mágica. Se existe realmente um cabo-de-guerra entre segurança e liberdade, entre a zona de conforto e o fazer acontecer, cabe apenas a cada um saber onde estão seus próprios desafios, porque pessoas ao nosso redor podem sim nos dar um grande – e muitas vezes importantíssimo – apoio, mas não podem superar nossas barreiras em nosso lugar. Por outro lado, também precisamos compreender que quando nossa Vontade fere a segurança de outras pessoas ao nosso redor, nos aproximamos perigosamente de um comportamento selvagem cujo único objetivo é a satisfação dos nossos próprios impulsos, e isso pode ser tão nocivo quanto o mergulho no abismo.
Essa luta entre o abismo e a barbárie é exatamente aquilo que nos define enquanto seres humanos, imperfeitos e constantemente tentando melhorar nossas próprias ações, ainda que o horizonte esteja, por definição, sempre além do nosso alcance. A luta para tentarmos nos tornar pessoas melhores é interminável. Em suma, não é o meu intuito com este texto falar sobre como podemos conquistar ou deixar de conquistar aquilo que buscamos sem nos deixar levar pela barbárie, até porque eu não tenho resposta alguma para isso. Precisamos entender que algumas coisas simplesmente não podem ser “traduzidas” para palavras porque o mundo é muito mais complexo do que nosso conjunto de conceitos dá conta. O que eu posso fazer pelo leitor que me acompanhou até aqui é apenas deixar uma conclusão que me levou alguns longos anos para “conquistar”, e talvez se transforme em alguma outra coisa daqui a mais algum tempo: querer pode ser, sim, igual a poder.
Tudo depende, é claro, do que você quer dizer quando diz que “quer” alguma coisa. Se o seu “querer” implica na sua ação de buscar aquilo que não está ao alcance imediato dos seus dedos, então no final seu poder vai depender apenas da força da sua Vontade para superar os obstáculos e chegar até lá. Não deixemos, contudo, que tal poder nos corrompa, e canalizemos nossas forças para ajudar aqueles que nos cercam, não para passar por cima deles quando estiverem caídos. Nada disso tudo que foi dito deveria ser novidade para qualquer praticante de artes marciais, ainda que eu possa ter utilizado caminhos inusitados e talvez “teóricos” demais para chegar a uma conclusão já bem conhecida na “prática” do dia-a-dia do dojang: não praticamos artes marciais para destruir, praticamos para construir. Não treinamos as pessoas para simplesmente bater, treinamos as pessoas para que tenham autocontrole. Praticamos artes marciais para que possamos nos tornar, dia após dia, seres humanos melhores do que éramos no dia anterior.
O autocontrole é, justamente, o controle sobre nossa Vontade e sobre nossos desejos. É o controle da balança que nos mantém distantes, ao mesmo tempo, do abismo e da barbárie. Como seres imperfeitos nos resta apenas o incansável trabalho de busca. No fim, o primeiro grande passo consiste, apenas, em controlar o próprio “querer”, o que não é nem de longe uma tarefa fácil. [1] Como, por exemplo, em: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005 (do original: Die Welt als Wille und Vorstellung). [2] Como em: NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência (parte 1). São Paulo: Escala, 2000 (do original: Der Wille zur macht). [3] Umberto Eco, escritor italiano traduzido para tantos idiomas e estudioso de grande relevância no meio da semiótica, publicou uma tese especificamente sobre essa afirmação em seu livro: ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Rio de Janeiro: Record, 2007 (do original: Dire quase la stressa cosa).